Eleição dos Conselhos Tutelares reflete polarização que vivemos hoje em todo o país

Tivemos no último final de semana a eleição unificada para os Conselhos Tutelares de todo o país, sem dúvida, um momento importante do exercício da cidadania e da participação popular. Na cidade de São Paulo, por exemplo, votaram 145 mil eleitores, 28% a mais do que em 2016, quando foram 113 mil votantes. A polarização […]

09 de outubro de 2019

Tivemos no último final de semana a eleição unificada para os Conselhos Tutelares de todo o país, sem dúvida, um momento importante do exercício da cidadania e da participação popular. Na cidade de São Paulo, por exemplo, votaram 145 mil eleitores, 28% a mais do que em 2016, quando foram 113 mil votantes. A polarização entre setores conservadores, ligados às igrejas neopentecostais e setores progressistas marcou o debate em torno dos Conselhos e levou muita gente que antes não acompanhava esse processo a se mobilizar.

Mas a questão central que precisamos indagar é se os Conselhos Tutelares estão de fato cumprindo seu papel? Os Conselhos Tutelares, criados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, em 1990, são órgãos autônomos, não jurisdicionais, encarregados de zelar pelos direitos das crianças e dos adolescentes. No rol de medidas que podem tomar, estão a de receber denúncias de violações de direitos, notificar o Ministério Público e o Judiciário, solicitar troca de guarda familiar, fiscalizar e articular políticas públicas para a área. No entanto, com o aparelhamento dos Conselhos Tutelares por setores religiosos fundamentalistas, muito desse trabalho tem sido desvirtuado. Há denúncias de que em muitos casos de abusos e abandono, ao invés de encaminhar para uma solução do problema o conselheiro religioso pede para a família orar, ou de casos que envolvem conflito de identidade sexual, em que esses conselheiros se posicionam do lado da repressão familiar, ajudando a piorar o conflito e estigmatizando ainda mais a vítima.

Na verdade, o grande debate posto é mais uma vez entre o que é público e privado, o caráter laico do Estado, que deveria ser respeitado e na maioria das vezes não é, com setores que não sabem separar o que é a liberdade religiosa de cada um e o que é papel de um conselheiro tutelar. Essa questão é muito mais grave quando se lida, como bem define o ECA, com sujeitos de direitos em condição peculiar, que é o caso das crianças e adolescentes. Apesar de serem sujeitos de direitos, a condição peculiar de desenvolvimento físico e intelectual implica num tratamento ainda mais cuidadoso, para evitar justamente sequelas e injustiças que podem ser levadas para toda vida. Enquanto sujeitos, precisam ser ouvidos e respeitados, o que na maioria das vezes não é feito quando se tenta impor uma visão religiosa sobre o que deveria ser público e laico.

Além disso, o embate religioso em questões como a de gênero, por exemplo, ajuda e encobrir problemas sérios e estruturais no atendimento das crianças e adolescentes. A maioria dos Conselhos não dispõem de uma estrutura mínima de trabalho e de uma formação continuada. A rede de atendimento na maioria das cidades está cada vez mais sucateada, faltam psicólogos, assistentes sociais, pessoas treinadas para conduzir situações complexas. A rede de proteção é cada vez mais precária, com abrigos muitas vezes com motivações religiosas, rede de creches conveniadas também com o mesmo viés e uma rede de saúde que não dá conta do atendimento adequado. Faltam também políticas de educação, cultura e lazer que propiciem um cuidado e um desenvolvimento mais profícuo para nossas crianças e adolescentes, sem contar o problema de segurança, uma vez que são justamente as crianças e jovens da periferia as mais expostos à violência, inclusive policial, como no caso da menina Agatha assassinada no Rio de Janeiro.

A forma como os Conselhos Tutelares e seu trabalho são tratados reflete em muito como setores da extrema direita veem essa questão, muitas vezes transvestidos de interesses religiosos. Não é por acaso que Jair Bolsonaro declarou em agosto de 2018 que o ECA deveria ser “rasgado e jogado na latrina”, pois, dizia ele, estimularia a “vagabundagem e a malandragem infantil”. É essa forma de tratamento que o presidente dá a uma conquista histórica que é o ECA, uma legislação avançada, que consegue congregar a responsabilidade da família, da sociedade e do Estado no cuidado com nossas crianças e adolescentes.

Infelizmente, muitos conselheiros eleitos por setores fundamentalistas pensam da mesma forma, e estão nos Conselhos muito mais pela capilaridade política que esse trabalho propicia, do que por qualquer compromisso com a defesa de direitos.

A mobilização dos setores progressistas nessa última eleição foi um importante grito de alerta, mostrou que a sociedade está mobilizada e que não vai deixar que destruam conquistas que foram resultados de embates e mobilizações dentro da democracia, como a aprovação do ECA pelo Congresso Nacional em 1990.

Não é um governo de extrema direita, como ministros toscos e alucinados, sem projeto de país e tocado por um bando de incompetentes que irá destruir acúmulos históricos que apontam outra saída para o pais, uma saída de combate à desigualdade, de respeito aos direitos e às diferenças, de soluções democráticas e não autoritárias. Devemos seguir mobilizados e atentos, em defesa dos direitos, contra o retrocesso. Outros embates virão e é preciso que a sociedade brasileira recupere seu protagonismo, sejamos todos sujeitos de direitos, capazes de apontar um outro rumo para o nosso país.

Ivan Valente

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