América Latina em ebulição contra o neoliberalismo

Poucos foram os que previram que a América Latina se levantaria contra o neoliberalismo. Os comentaristas de economia na grande imprensa defendem o ideário liberal como se não houvesse alternativa, como se o caminho da austeridade fosse único, científico e inquestionável. Questões como o equilíbrio fiscal e contenção da dívida pública escamoteavam, em fato, um […]

29 de outubro de 2019

Poucos foram os que previram que a América Latina se levantaria contra o neoliberalismo. Os comentaristas de economia na grande imprensa defendem o ideário liberal como se não houvesse alternativa, como se o caminho da austeridade fosse único, científico e inquestionável. Questões como o equilíbrio fiscal e contenção da dívida pública escamoteavam, em fato, um verdadeiro sistema de transferência de recursos do Estado para as mãos dos mais endinheirados. A austeridade para os astutos economistas do establishment deveria, obviamente, ser feita sempre nas costas dos mais pobres. Toda receita nova deveria vir da economia conquistada com a retirada de direitos ou redução do Estado. A novidade vista, no entanto, é que em vários países da América Latina os povos levantaram-se contra os ataques feitos à dignidade, integridade e condições de vida das pessoas.

O primeiro a levantar-se foi o Equador, quando a retirada de subsídios aumentaria o preço dos combustíveis. O detalhe é que a retirada fazia parte de um acordo entre o FMI e o Equador. Ou seja, entre uma agência do mercado financeiro internacional e o povo ao qual deveria representar, Lênin Moreno preferiu o interesse estrangeiro. A Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), com apoio em massa da população, organizou uma marcha histórica até Quito, o que levou o governo a revogar a medida, não sem antes mudar a capital para Guayaquil. No Peru, também houve manifestação por direitos. Na Bolívia, contra candidato do neoliberalismo, Carlos Mesa, Evo Morales conseguiu mais um mando.

Em terras chilenas, o povo não só ergueu-se, como escreveu páginas lindíssimas de resistência. Um dizer registrado em muro dizia que “o neoliberalismo nasceu e morreu no Chile”. Tomara que seja verdade. País considerado modelo para a direita latino-americana, com destaque para o ultraliberal Paulo Guedes, o Chile experimentou três décadas de desmonte estatal, tornando-se um dos países mais desiguais do mundo. Segundo a revista Forbes, a soma da fortuna de doze bilionários alcança 25% do PIB nacional. 5% dos mais ricos se equiparam com os 5% mais ricos da Alemanha, ao passo que os 5% mais pobres estão em situação equiparável aos 5% mais pobres da Mongólia. Foi justamente este cenário de profunda desigualdade e falta de acesso aos direitos sociais mínimos que causou a explosão. No Chile, saúde, educação e previdência são privados. Os pobres, dito isso, ficam ao sabor da má sorte. Muito embora Sebastián Piñera tenha feito várias promessas e concessões, junto com o parlamento, como reajuste na aposentadoria, voucher para a saúde e congelamento do preço das tarifas até o fim do ano que vem, a população não sai das ruas. Eles querem uma nova Constituição que supere o entulho autoritário de Pinochet e o neoliberalismo.

No domingo último, Maurício Macri deu adeus à presidência na Argentina. Após fazer uma gestão que seguiu à risca todo o receituário de ajustes, incluindo reforma da previdência e privatizações, os índices conquistados foram 53,5% de inflação e 35,4% da população abaixo da linha da miséria. Alberto Fernández levou o páreo no primeiro turno com 48,03% contra 40,45% do adversário. A chapa peronista, com Cristina Kirchner na vice-presidência, voltou à Casa Rosada após quatro anos de massacre da população. É inacreditável que os neoliberais empedernidos justificaram o desastre do governo Macri com a aplicação parcial das políticas neoliberais. Para eles, faltaram ataques. Os argentinos, assim como os chilenos, não querem pagar pelo lucro do mercado financeiro.

Atravessando o Mar Del Plata, haverá segundo turno. O candidato de Frente Ampla, no poder há 15 anos, Daniel Martínez alcançou 40,7% contra 29,9% Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional. Ainda que mais embolada, a vitória da Frente Ampla pode confirmar os desejos continentais de manter distante o neoliberalismo.

Todo esse clima de mudança tem assustado os donos do poder. Muitos já correram para dizer que os levantes não são contrários ao “liberalismo econômico”. Santa ingenuidade! Bolsonaro chegou a afirmar em mais de uma ocasião que as forças armadas já se preparam para conter revoltas no Brasil semelhantes à chilena. Nesse caso, do ponto de vista de sua mente reacionária, ele tem razão. A política econômica de Paulo Guedes encontra eco somente no sistema financeiro e nos entusiastas do livre comércio. A reforma da previdência colocará milhões de idosos e pessoas com algum tipo de restrição numa posição de imensa vulnerabilidade social. Ao liquidar direitos e acentuar o esvaziamento do Estado, mais pobreza surgirá. Sem contar os mais de 12 milhões de desempregados, os quais conformam filas e filas à procura de emprego. Sem resolver os problemas sociais, ao contrário, agravando-os, a rua será o palco da insatisfação popular.

As elites precisam entender que o povo não aceita mais o neoliberalismo. Seguiremos em luta. Não podemos permitir que o futuro seja sacrificado em nome dos bancos. Que os novos ares da América Latina se espalhem por todo o território brasileiro.

Ivan Valente (PSOL/SP)

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