Altamira e a Política de Encarceramento em Massa do Estado Brasileiro

Na última semana assistimos a mais um episódio de barbárie proporcionado pela incapacidade do poder público em lidar com a questão da segurança pública e com a questão da superlotação dos presídios e casas de detenção provisória. Este é um problema que se repete por todo o país, uma vez que a lógica é sempre […]

06 de agosto de 2019

Na última semana assistimos a mais um episódio de barbárie proporcionado pela incapacidade do poder público em lidar com a questão da segurança pública e com a questão da superlotação dos presídios e casas de detenção provisória. Este é um problema que se repete por todo o país, uma vez que a lógica é sempre a mesma: “prender, prender e prender”. Não existe plano, não existe proposta.

Nessa toada de colocar atrás das grades – num mesmo espaço físico, completamente inóspito e degradante – figuras de peso dentro do submundo do crime e “ladrões de galinha” para se virarem e sobreviverem à selvageria que o ambiente os obriga. Estamos liquidando qualquer possibilidade de recuperação para quase a totalidade dos internos do sistema carcerário de todo o país. No episódio de Altamira, quase metade dos mortos nem se quer haviam sido julgados. Ou seja, o Estado Brasileiro não lhes deu nem o direito constitucional básico de um julgamento isento e com amplo direito de defesa.

Altamira é hoje, segundo o Atlas da Violência 2019 publicado na última segunda 05/08/19, o segundo município mais violento do Brasil. Ranking esse que a cidade passou a figurar com assiduidade nos últimos anos. Sua população dobrou de tamanho na última década e o grande fato responsável por esse fenômeno foi a construção da Usina de Belo Monte. Uma verdadeira aberração do ponto de vista socioambiental, o empreendimento conduzido pela Norte Energia – consórcio formado por empresas de direito público e privado – mudou completamente a vida de toda a população ao redor, atraindo para a região dezenas de milhares de pessoas em busca de trabalho e melhores condições de vida. Hoje, após a conclusão da construção do empreendimento, o que observamos é que cada Quilowatt entregue pela Usina de Belo Monte tem em seu custo de produção muito mais do que os R$77,00 previstos no ato do leilão que a Norte Energia venceu. O custo de produção da energia de Belo Monte precisa ter adicionado à sua conta a destruição do modo de vida dos indígenas e ribeirinhos que ocupavam a Curva Grande do Rio Xingu histórica e milenarmente e que do Rio tiravam seu sustento. Precisamos considerar todo o impacto socioambiental que a Usina de Belo Monte trouxe e a tragédia do Massacre de Altamira deve estar nessa conta. Não só os 64 mortos (16 decapitados) da barbárie, mas também a incrível taxa de 133,7 mortes violentas para cada 100 mil habitantes no último ano. É um desastre completo.

Como tudo o que aflige a sociedade brasileira hoje em dia, entender o Massacre de Altamira não é simples, mas sim de configurações extremamente complexas. A questão carcerária também não pode ser resumida em um ou dois fatores, mas sim numa confluência de contradições desumanas que servem como mecanismo de criminalização da pobreza e confinamento de corpos negros, que são a grande maioria da população carcerária do país.

Como em Altamira, a realidade na maioria dos presídios brasileiros mistura uma completa falta de capacidade em garantir a dignidade humana com o descaso do poder público em cumprir seu papel de garantidor da integridade física dos seus custodiados. O Estado Brasileiro é culpado pela morte de cada detento deste massacre e dos tantos outros que vivenciamos no último período, em especial no norte e nordeste do país.

Está em curso uma guerra. Facções criminosas – que são reflexo direto de todo esse descaso com a vida dos presos, obrigando-os à filiação em grupo A ou grupo B para garantir sua sobrevivência e de seus familiares do lado de fora – estão se matando, dentro e fora dos presídios, pelo controle das rotas do narcotráfico internacional que têm no território brasileiro uma grande avenida em direção à Europa, EUA e Ásia. A cocaína produzida nos nossos vizinhos andinos, conta com grandes parceiros no Brasil para alcançar seus mercados consumidores e estes parceiros têm nas facções criminosas seus grandes prestadores de serviço no atacado e no varejo. Não nos enganemos em acreditar que os grandes atores da droga no Brasil, responsáveis por abastecer o mercado mundial de cocaína, estão encarcerados em presídios imundos ou escondidos nas favelas correndo da polícia, das milícias e de outros traficantes. Sabemos bem que o dinheiro grosso do tráfico está muito mais perto dos aviões presidenciais e dos helicópteros de senadores da república do que da Maré ou de Heliópolis. É por isso que não faz sentido algum sustentar essa política de guerra às drogas que marginaliza, mata e encarcera a juventude preta do nosso país roubando o futuro pelo fenótipo ou pelo CEP.

Não facilita a dinâmica da questão termos presidindo a nação um despreparado para o cargo. Jair Bolsonaro é uma pessoa completamente alheia a qualquer espírito de humanidade, compaixão ou apreço pela vida do outro. Sua declaração, no “calor” dos acontecimentos da última semana, deixa claro que lhe falta o mínimo de conhecimento sobre a questão carcerária do país e que ele mesmo não faz nenhuma questão de conhecer. Saber que estamos no país onde Rafael Braga foi preso, julgado e condenado por portar Pinho Sol, já o ajudaria. Saber que 1 em cada 3 presos respondem por tráfico no país e que em sua maioria esses presos não tinham antecedentes e portavam quantidades ínfimas de droga, também serviria de subsídio para ter melhores condições de lidar com a questão. Com a Lei de Drogas, sancionada pelo governo Lula em 2006, o percentual de presos por tráfico saiu de um patamar menor que 10% do total de prisões para 33% atualmente. A população carcerária saltou dos 360 mil em 2005 para inacreditáveis 704 mil em 2019 (Reportagem G1 – 26/04/2019). Este número supera em 70% a capacidade atual e 36% destes presos ainda não foram julgados. Alguém aqui sentiu qualquer diminuição da violência que justifique a dimensão destes números?

Pretos, pobres, jovens e descartáveis sob a ótica fascista de Bolsonaro e seus asseclas: Sérgio Moro, Witzel, Zema, Dória, e outros. Onde está a ação enérgica do ministério da justiça contra as milícias que aterrorizam a vida de milhões de cidadãos e cidadãs cariocas? Cadê o Queiroz? Contra esses não há o interesse de colocar em “cana”. Forte com o fraco e fraco com quem é forte. Esta é a tônica bolsonarista.

Precisamos cuidar do nosso povo. Precisamos valorizar a vida. Precisamos garantir oportunidades de educação emancipadora e libertadora para os nossos jovens de forma gratuita, laica, universal e de qualidade. Precisamos promover a real abolição em nosso país, que há 131 anos conta a mentira de estarmos em uma sociedade livre. Aqui liberdade está diretamente ligada à cor da pele, classe social, gênero e local de moradia.

Toda nossa solidariedade às famílias dos mortos em Altamira e de todas as vítimas da violência nesse país. Não existe saída outra que não o caminho da solidariedade, da coletividade, do compartilhamento e da compaixão para com o nosso povo. O Inverno bolsonarista está aí, mas a primavera há de chegar e dias melhores virão.

Ivan Valente

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